sábado, 8 de janeiro de 2011

Cilindrinho - A Doce Crioula

Ricardo era amigo do meu irmão Pedro. Tinha uma conversa fácil e cativante. Emanava confiança quando o assunto era animais. Gostava de explicar e exibir os conhecimentos. Conhecendo-o, rapidamente se tinha vontade de ter um cão, era um criador de Terranova, Serra da Estrela e São Bernardo, entre outros.

Como eu só gostava das raças grandes não foi difícil até ter comigo um Terranova lindo de nome Cuba. Era um cão fantástico, imponente e dócil como só os Terranova conseguem ser.

Meses passados voltei lá ao canil do Ricardo, em Santa Maria da Feira, em Março de 2003. Queria uma fêmea para o meu Terranova e na visita fui acompanhado da minha irmã Patrícia que naquela altura estava a viver comigo. Viu um São Bernardo e chamou-lhe Afonso. Não mais o largou, deitando por terra os meus planos de trazer uma fêmea.

Bom vendedor, o Ricardo ia-me dizendo que da próxima vez levas duas fêmeas. E passados alguns meses, voltei ao Ricardo, ao canil, com intenção de comprar a fêmea para o Cuba. Assim que cheguei mostraram-me uma cadelinha Cocker Spaniel que estava a amamentar dois São Bernardo, um macho e uma fêmea. O Ricardo lá ia explicando que a mãe tinha asfixiado doze das catorze crias e as que sobraram juntou-as à Cocker Spaniel para amamentar. Tinham quatro semanas e eram duas bolinhas de pelo. Fui lá com a minha namorada Lurdes, ainda mais sensível que eu. Claro que foi impossível de resistir e lá veio connosco uma fêmea São Bernardo. Chamamos-lhe Crioula.

A Crioula era uma bola de pelo, um verdadeiro peluche. Tinha todas as graças de um cão jovem, acrescidas da piada do aspecto fotográfico peluchês… Ainda por cima tinha apenas um mês o que obrigou a comprar leite de cão e uma atenção especial para com um animal que tinha sido amamentado por outra mãe. Quando se punha de pé, apoiada apenas nas patas traseiras, era frequente cair para trás, ficando toda atrapalhada.

Era um acontecimento sair com a Crioula, deixava as pessoas a olhar para ela, todas com vontade de fazer a festinha da praxe. Certo dia fui ao cinema com ela, dentro de um saco de compras. Sempre foi uma paz de alma e dormiu o filme inteiro. Fez uns chichis mas eu andava com toalhetes e limpava tudo.

A minha mãe ficou com ela quinze dias, quando fui a Cuba de férias. Chamou-lhe a “minha princesa”.

E era-o de facto, nunca vi um cão tão calmo e dócil. Nunca ladrou para ninguém nem para nada. Nem para gatos, pelo contrário: no dia em que o Peteco, um gatito, chegou à mesma casa que ela enquanto os outros cães ladraram, ela protegeu e deu de mamar. O gato dormia entre as patas dela.

Era a mãe do quintal, dava-se bem com todos os cães, e adorava carinhos. Fazia qualquer coisa por um carinho e só havia mais uma coisa que ela gostava tanto como carinhos, sendo essa coisa bananas. Sentia o cheiro à distância, e vinha a correr a pedir a sua banana. Para pedir, quer os carinhos, quer outra coisa qualquer, tinha um latir que mais parecia um ronronar. Um ronronar doce e meigo. Toda ela era meiguice.

Foi crescendo e certo dia apareceu com uma ferida no nariz. Foram quatro anos a tentar curar a ferida. Cremes, antibióticos, colar isabelino, às resmas… Nada funcionou. Nessa altura conheci o Marcelo, veterinário fantástico, com um saber e uma competência como nunca vi. Ajudou-me muito a cuidar da cadela mais meiga do mundo.

Mas afinal as feridas tinham uma razão extra para existir, um cancro mamário. Conforme foi crescendo, o Marcelo foi-me dizendo que não havia solução, que mais tarde ou mais cedo havia que tomar uma decisão. Mas a Crioula andava feliz, sempre andou. Nunca ganiu, nunca latiu. Apenas ladrava baixinho ou ronronava alto para pedir alguma coisa.

Era uma paz… Um doce…

O cancro cresceu e certo dia atingiu cerca de 40 cm. Estava enorme. Tinha chegado o dia de tomar a decisão. Preparou-se tudo, mandou-se vir o medicamento da eutanásia mas nada fazia prever que em menos de 9 dias, tudo se tivesse precipitado.

A Crioula começou com ataques epilépticos e começou a tomar Valium. E a eutanásia não chegava, ainda faltava uma semana para chegar. Em Cabinda, nada a fazer senão esperar. Mas ela continuava feliz, a comer banana e a abanar a cauda sempre que recebia um carinho. Até que há três dias atrás aconteceu, a bolsa do tumor rebentou. E o cheiro a podre apoderou-se do quintal. E a eutanásia não chegava.

Hoje a eutanásia chegou, após três dias a gerir a situação, a limpar a Crioula porque ela já não se mexia para fazer as necessidades. Já não abanava o rabo. Felizmente ainda queria banana desde que dada na boca. Ainda bem para poder dar-lhe os sedativos, dentro das bananas.

Havia que encontrar a veia e administrar a eutanásia. A triste verdade é que não consegui. Não fui capaz de meter a agulha na veia inviabilizando a hipótese de dar à minha doce cadela uma morte em paz. Ao fim de duas horas a tentar, extenuado e em choque, desisti. E a Criolinha já não queria banana, pela primeira vez na vida. Ela que adorava banana.

A solução era o abate com um tiro. E assim foi.

Ao contrário das outras vezes, em que metia a cabeça de fora e a sua grande língua a babar-me os vidros e os bancos do carro, desta vez foi deitada, neste último passeio. Com olhar triste antagonizando com o olhar feliz que o meu cilindrinho tinha habitualmente.

Talvez de forma premonitória, chorou duas vezes antes de morrer. Foi a primeira vez nos seus 8 anos de vida, que ouvi chorar. Consumado o horrível abate, que nunca esquecerei na vida mesmo que venha a sofrer de Alzheimer, chorei. Chorei porque me lembrei dela aos saltos atrás de mim a pedir banana. Era como um cilindro, de tão gordinha que era. Chorei pela morte horrível que teve, pelo sofrimento que teve antes da morte. Chorei por ter sido incompetente na colocação do cateter. Há muito que não chorava tanto.

Matei hoje a Crioula e com ela vão momentos únicos de carinho e amor incondicional. Dói tanto que não consigo explicar o que sinto.